sábado, 10 de janeiro de 2015

Faça-o por mim. Faça-o por si.

As coisas que valem a pena têm um nome santo. E ter um nome santo não é só ter um nome santo. Há quem tenha o primeiro sem ter o segundo e há também quem tenha o segundo sem ter o primeiro. Eu não tenho nenhum dos dois e toda a gente sabe. Encarregue-se de me levar ao cadafalso para morrer amanhã de manhã. Esta noite doía-me pouco porque estou triste. Amanhã doer-me-á por certo. Terá de ser discreto. Eu não quero que ninguém me conheça. Basta levar-me para um sítio maior e já ninguém me conhece, portanto o dinheiro chega. Tratarei esta noite de cortar o cabelo todo e as pestanas e as sobrancelhas. Se quiser faça uma colagem com o meu cabelo. Era o que eu gostava. Mas se não quiser, pode fazer o que entender. As pestanas e as sobrancelhas não sei se são bonitas cortadas, estou certa de que não fará nada que se aprecie com elas.
A culpa da minha morte não será sua. Por isso, aqui tem algum dinheiro para comprar o que for que o disfarce. Seja discreto. Escolha roupa com os tons da estação. Não use só uma cor que pode não ser discreto. Nem só de preto é discreto. Deixe estar. Amanhã eu deixo-o entrar de novo e pela última vez na minha casa. Será também a última vez que esta casa é minha. À direita deste móvel deixo um saco com roupa para que a vista. A casa de banho é ao fundo à esquerda e novamente ao fundo à esquerda. Eu ficarei junto ao móvel o tempo todo. A espera deve ser o mais imóvel possível para dar ritmo ao pensamento. Na tristeza, quanto mais se mexe os pés e os lábios menos se namora com ela. Não se esqueça que eu vou morrer. Não me diga bom dia. Nem me faça perguntas. Nunca me pergunte se estou ou não certa. Não me pergunte se tenho ou não medo. Não é uma questão sua. Dê-me direcções apenas. Venha. Pode sair do carro. Suba. Desça. Não se mexa. É importante que não se mexa seja a sua última direcção. É importante também que não me deixe dedos, nem pele para atrasar a idenficação do meu corpo. Mas claro que isto é só importante para si, que precisa de tempo para ficar seguro. Mudemos os dois de vida. Eu para uma que não deve existir e o senhor noutro sítio, junto de pessoas melhores, mais rico, com novas manhãs. Saiba que trarei comigo uma arma e só verá a combinação do cofre, onde me acaba de ver a guardar o dinheiro depois de eu estar morta. Quando o senhor me abrir a mão direita encontrará um papel com a combinação. Isto é para garantir que o senhor me mata. Na mão esquerda estará a chave do sítio onde deixei ficar a menina. Ela está bem e ficará bem. O senhor também. Não queira confiar na polícia, porque a menina quer estudar e a polícia não dá dinheiro. A polícia só dá castigos e eu não sou nenhuma criminosa. Só quero que assim seja.
As dúvidas que tiver, saiba que são suas. Pode ser apanhado se não as resolver. Não por mim. Pela polícia, que o castigará. Agora vou oferecer-lhe um chá. Eu gosto muito de fazer chás. Este tem erva-príncipe, manjericão, dois tipos de menta, lúcia lima, anis, flor de laranjeira e raspas de limão. Parece-me que lhe vai fazer bem. Em relação ao seu trabalho, basta dizer quem é. Nome, apelido. Nada mais. São sete mil euros por mês. A morada da casa ser-lhe-á dada pelo padre. Não deve fazer perguntas sobre o padre.
Nunca usei aqueles cálices. Usemos. Este é o cálice do meu nome. Já viu. Tem o meu nome escrito. Tome o chá. Beba o chá. Façamos isto em memória de mim.  

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