quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Divã

A definição em que me creio nem ninguém ma elogia nem ninguém ma insulta. Posto isto eu não posso apontar para ela como coisa além-eu e dizer olha!, tu também o dizes, tu também o pensas e sentes!, em quem mais podes acreditar senão em ti, amigo!, pois olha: eu concordo contigo e assim somos dois!, dois é mais forte! dois é mais forte! Passa-se, portanto, a estória de se ir carregando apenas dentro de mim a definição em que me creio: uns dias mais pesada, outros dias mais leve, é certo, interessando só que nunca se exagera até transbordar e me sujar a roupa. Denuncia-se em mim, doutor, uma de duas coisas: a loucura de me crer o que não me manifesto ou a tristeza de me ir fugindo para público um segredo plausível e escandaloso que em mim não existe. Haverá esta compilação genética para a desgraça que é a justificação queixosa de uma pessoa se sentir sozinha e incompreendida: é sabido que sim. Mas o que eu preciso de saber é quantos discursos frustrados sobre si mesmo aguenta um ser antes de se refundir na humildade sôfrega de uma consciência limitada que havemos de ter sobre as nossas "grandes e universais" limitações? Qual é a justiça da conformação das almas que não se podem servir da expressão por serem como um milagre de Fátima se o milagre de Fátima fosse vir a ser contado esta noite na televisão. Não estou a dizer que me acho à frente do tempo e que todo o problema é um desfasamento epocal e a culpa não é minha étecétera. Já vai pensar errado de mim... Eu sei. Mas era justamente a este aspecto que eu queria chegar: falho repetidamente e não tenho pena de continuar. Isto é uma coisa que tenho desde que me lembro doutor... O meu pedido é pois tremendamente simples: faça-me acreditar que me venceram. Vá-me ao cansaço, enlouqueça-me os espelhos todos que há. Tem dois anos para me fazer acreditar que toda a minha vido tem sido a perturbação mimada de uma criança grande teimosa com falta de pimenta na língua. Digo-lhe isto firmemente, apesar de eu já saber que a doutora não vai conseguir, porque agora, enfim, err... agora não tem como não se comover desta desgraçada criatura que veio auto-renunciar-se práqui; mas depois a doutora vai pensar que, na verdade, eu não penso assim como penso e temos a vaca armada. Enfim. Para tornar as coisas mais sérias: eu comprei uma arma.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Pode não

Eles não descansarão enquanto não nos destruírem completamente. Vão cansar-te como se cansa um cão.  Quando tu te cansares e dormires vão sussurrar-te que não pensas como achas que pensas. Pode pouco ou nada o homem contra isto. Como todo o homem morre dorme todo o homem. É uma consequência de dispersar por aí. É esse barco que te vão roubar. O teu aí jaz camarada e tu não sabes nem onde o velar. Eu também não sei. Nem já eles se lembram. Prometo-te amor, eu prometo que nada disso é preciso. No fim todos vamos querer aproveitar a vida. E também tu vais acreditar que queres aproveitar a vida. Pedro perdia a mulher enquanto o queixo dela lhe caía aos pés. Ele estava a reparar no quanto chovia. Ela levantou-se. Mas foi só isso que fez.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

escócia

semeava debaixo do paladar frases dela e colhia ainda verdes as frases que de outros lá ficavam para por dentro de um cesto que um dia havia de deitar fora. a terra que percorria era de uma simpatia extrema e cuidada e de cada vez que ela se baixava à terra com o cesto - para se cumprir - a terra cumprimentava-a com olhos ternos que convocavam um porto íntimo de beleza inexplicavelmente conhecida. no lugar de se baixar - atracava. 

morreu desta vida acompanhada pelo alheio sem nunca o deixar abrir em flor debaixo do paladar. se cantasse - cantava-se livre. e a menina que ia no seu colo olhava-lhe para o pescoço e via que lhe pulsavam as veias tal qual como a ela própria lhe vibrava suavemente o pulso.