quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

de um agitador para trás

eram as curvas agitadas das esferas do universo dispostas em cima da mesa de papel. transparentes que eram, ninguém as via. passou perto delas um senhor meio parado de rosto, mas com uma boca acastanhada e doce que nunca dizia nada. eu perguntei-lhe se as tinha visto. ele sorriu só que não, como eu já sabia antes de ter composto a voz e cachecol. era conhecidamente pouco misterioso para mim o que fazia da transparência um silêncio daqueles que não existem por fazerem parte do entendimento que há entre as vozes e os ouvidos. mas mesmo assim eu insistia em ficar atrás da mesa de papel esgotando a palma das mãos como quem mostra de graça uma placa que diz bem-vindo ou tenha a bondade e a amabilidade de olhar com carinho para o sinal de aproximam-se rotundas sentindo-se sós, precisando de si que aqui pus. houve um dia que senti nos ossos um estranho frio indefeso que me dava a cadência de uma bailarina muito talentosa mas que tinha sido despedida e eu, comecei a acarinhar um erguer de queixo irreversível sem números decimais nem dúvidas. constantemente paravam junto da mesa de papel demónios vestidos de pessoa que cheiravam a doença física das mãos e a desespero da boca. o melhor que existia delas, repousava nos meus ombros junto da caspa que ficava dos abraços e o pior cerrava-o em punhos repentinos e curtos que construía quando me sabia alistada num exército cuja luta desconhecia. tinha medo. mas não mais que força e julgamento por dizer.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Casa: parte primeira - último volume (duvidar do ideal)

As paredes tinham fogos de artifício para celebrar a tua chegada
e era tão precoce querer levar o mundo a ver-me contigo quando chegasses
que eu reuni nos bolsos do avental das cozinheiras sete punhados de carpideiras
não fosse eu chorar
se não viesses à nossa festa.

seria uma coisa íntima.
uma coisa muito nossa e eu não teria mais daquele whiskey oferecido que derramaste desde o meu peito ao meu ventre quando me emprestei a ti.

juro-te que não te juro mais nada sem ser deitar tudo o que não é da nossa pequena festa para fora do mundo.

eles que se entretenham sem nós; os nossos demónios que se ardam sozinhos. juro-te também que preparo o meu coração com arames desenhados a lápis de cor para que te encante tanto abraçar-me como te seja natural deixar-me porque às vezes tu tens de ir embora. eu sei. peço desculpa por esta da mentira das juras mas tenho muitas juras para deitar por e sobre ti. tu sabes que é assim.

um dia contaram-me que jurar era olhar circularmente a alma não para a prender mas para a guardar numa caixinha, como aquelas caixinhas onde se guardam os compromissos. os anéis. talvez tu, talvez tu um dia possas comprar-me um anel. um anel bem bonito que seja nosso. um símbolo. os símbolos vencem a distância; a física toda não pode nada contra os símbolos.

espero que esses comprimidos que tomas para te livrares da coceira nos olhos quando ouves aquelas músicas não te causem habituação. não quero sentir o teu rosto frio quando chegares. nem eu, nem as tuas lágrimas de saudade merecemos esses teus pontos finais. tanto mais preferíamos a irritação dantes quando julgávamos que tu só conhecias as reticências.

enganar uma mulher decidida é de uma vileza tremenda,
fica uma mulher decididamente enganada.

há vinte e um minutos vi-te numa tela iluminada e os meus joelhos cruzaram os arrepios que deles vinham com os arrepios que vinham do meu coração e fiquei muito perturbada. não sei portanto que andaimes invisíveis terei de montar para que me vejas de pé quando chegares. talvez os camareiros me ajudem. ou talvez possa arranjar umas criadas loirinhas para vigiarem o meu equilíbrio.

ainda que tenha esse receio, tomei nota na aula de fonética para comprar um perfume unanimemente misterioso a combinar com as rosas que o vinho me proporciona sem destoar do gigante robe de seda com cauda vermelho e preto que não te vai parecer gigante ou bicolor. parecer-te-á ondulante como um mar de aromas que acontece serem satélites da minha pele. um bom astronauta é necessariamente como um bom filho. regressa a casa.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Faça-o por mim. Faça-o por si.

As coisas que valem a pena têm um nome santo. E ter um nome santo não é só ter um nome santo. Há quem tenha o primeiro sem ter o segundo e há também quem tenha o segundo sem ter o primeiro. Eu não tenho nenhum dos dois e toda a gente sabe. Encarregue-se de me levar ao cadafalso para morrer amanhã de manhã. Esta noite doía-me pouco porque estou triste. Amanhã doer-me-á por certo. Terá de ser discreto. Eu não quero que ninguém me conheça. Basta levar-me para um sítio maior e já ninguém me conhece, portanto o dinheiro chega. Tratarei esta noite de cortar o cabelo todo e as pestanas e as sobrancelhas. Se quiser faça uma colagem com o meu cabelo. Era o que eu gostava. Mas se não quiser, pode fazer o que entender. As pestanas e as sobrancelhas não sei se são bonitas cortadas, estou certa de que não fará nada que se aprecie com elas.
A culpa da minha morte não será sua. Por isso, aqui tem algum dinheiro para comprar o que for que o disfarce. Seja discreto. Escolha roupa com os tons da estação. Não use só uma cor que pode não ser discreto. Nem só de preto é discreto. Deixe estar. Amanhã eu deixo-o entrar de novo e pela última vez na minha casa. Será também a última vez que esta casa é minha. À direita deste móvel deixo um saco com roupa para que a vista. A casa de banho é ao fundo à esquerda e novamente ao fundo à esquerda. Eu ficarei junto ao móvel o tempo todo. A espera deve ser o mais imóvel possível para dar ritmo ao pensamento. Na tristeza, quanto mais se mexe os pés e os lábios menos se namora com ela. Não se esqueça que eu vou morrer. Não me diga bom dia. Nem me faça perguntas. Nunca me pergunte se estou ou não certa. Não me pergunte se tenho ou não medo. Não é uma questão sua. Dê-me direcções apenas. Venha. Pode sair do carro. Suba. Desça. Não se mexa. É importante que não se mexa seja a sua última direcção. É importante também que não me deixe dedos, nem pele para atrasar a idenficação do meu corpo. Mas claro que isto é só importante para si, que precisa de tempo para ficar seguro. Mudemos os dois de vida. Eu para uma que não deve existir e o senhor noutro sítio, junto de pessoas melhores, mais rico, com novas manhãs. Saiba que trarei comigo uma arma e só verá a combinação do cofre, onde me acaba de ver a guardar o dinheiro depois de eu estar morta. Quando o senhor me abrir a mão direita encontrará um papel com a combinação. Isto é para garantir que o senhor me mata. Na mão esquerda estará a chave do sítio onde deixei ficar a menina. Ela está bem e ficará bem. O senhor também. Não queira confiar na polícia, porque a menina quer estudar e a polícia não dá dinheiro. A polícia só dá castigos e eu não sou nenhuma criminosa. Só quero que assim seja.
As dúvidas que tiver, saiba que são suas. Pode ser apanhado se não as resolver. Não por mim. Pela polícia, que o castigará. Agora vou oferecer-lhe um chá. Eu gosto muito de fazer chás. Este tem erva-príncipe, manjericão, dois tipos de menta, lúcia lima, anis, flor de laranjeira e raspas de limão. Parece-me que lhe vai fazer bem. Em relação ao seu trabalho, basta dizer quem é. Nome, apelido. Nada mais. São sete mil euros por mês. A morada da casa ser-lhe-á dada pelo padre. Não deve fazer perguntas sobre o padre.
Nunca usei aqueles cálices. Usemos. Este é o cálice do meu nome. Já viu. Tem o meu nome escrito. Tome o chá. Beba o chá. Façamos isto em memória de mim.  

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Je suis Charlie

Nem era de noite. Eles não fizeram segredo.

Que sei eu da vida dos outros se os outros sabem onde guardo a minha.

Nem imaginar. Ficar aqui deitado e ver a surpresa implacável descer sobre o que já se passou.

Sozinho sou só esta limitação em percussão e sopro num destino fixo e firme. Desconfio até haver viagem, sabendo que há na chegada lugar para dormir.

Quando falo contigo sei que nos estendemos à distância um do outro e o destino fixa-se aí. Firma-se no que te digo. É esse o meu deus: o espaço que percorre a minha palavra até que ela chegue até ti. Daqui até aos teus olhos. O destino fixa-se aí. Firma-se dentro da tua lágrima.

Mataram-nos para que a tua lágrima caísse.
Esquecem-se que nós falamos sobre a tua lágrima e não sabem que tu não vais parar de ver o espaço entre nós preenchido quando o mundo dita o requiem e eu com ele sussurro para dentro da tua dor e da nova lágrima que te nasce. 

O que pode um assassino contra nós se não nos calarmos
O que pode um assassino contra nós se viver de olhos abertos
O que pode um assassino contra nós quando falamos
O que pode um assassino contra nós quando vivemos de olhos abertos.